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sexta-feira, abril 30, 2004

As miudas giras 



Escrevinhei ontem nesta coluna uma ideia que me ocorreu de súbito durante a tarde (após mais um encontro imediato do primeiro grau, como é óbvio): a de que todas as raparigas que se arranjam são sempre giras, independentemente dos seus atributos físicos. O Filipe Alves concordou comigo – o que registo com gosto -, mas para minha surpresa, o Filipe enveredou por uma curiosa distinção entre "gira" e "bela". Nesta última categoria ele inclui aquelas "afortunadas" cuja beleza física "é uma característica genética", com a qual tiveram a sorte de nascer.

Neste aspecto estou de acordo com o Filipe e com a pertinência da sua distinção. Esta classe de "afortunadas" existe mesmo, e a Elite ou a Central Models estão aí para o provar. Mas se é certo que nem todas as raparigas com quem nos cruzamos todos os dias possuem (infelizmente) os encantos estéticos da Fernanda Serrano, da Alicia Silverstone ou da Sarah Michelle Gellar, penso – e sem querer com isto ser moralista - que esta beleza “genética”, idealizada e canónica é profundamente sobrevalorizada entre nós.

É verdade que uma rapariga verdadeiramente bela pode transcender os condicionalismos da toillete diária. A Kate Moss de t-shirt e de jeans continua a ser lindíssima. Mas lembra-te, Filipe, que cada época histórica teve os seus cânones de beleza, cânones esses que sofreram constantes mutações ao longo dos tempos. As características "genéticas" que hoje elevam a Kate Moss ao estatuto de deusa tâ-la-iam provavelmente condenado ao anonimato na Renascença. De igual modo, as generosas formas da Sophie Dahl – que hoje em dia estão muito longe de serem consensuais – teriam feito dela uma musa de Ruebens ou de Ticiano. A beleza, no sentido platónico a que - julgo eu - te referes, é uma matriz de normas e preceitos, altamente condicionada pelo tempo e pelo lugar. E se é certo que as rimas de Petrarca ou a lírica Camoniana ainda hoje nos comovem, não é menos verdade que a beleza idealizada e "genética", na qual platonicamente projectamos tantas virtudes e qualidades, seja um produto dos tempos. Ninguém nos garante que a Laura de Patrarca ou a Vénus de Botticcelli venham a ser a mulher do século XXII (oxalá me engane!).

Isto, penso eu, só reforça a importância das raparigas que andam "sempre giras". Uma miúda que ande sempre bem vestida e arranjada, com gosto, que saiba estar, que seja inteligente, dada e divertida, está sempre bem em todo o lado. Independentemente das suas características "genéticas". Independentemente de ter os olhos da cor "errada", de não ter a altura "certa", de já não ter "aquela" idade. Uma rapariga só é "vulgar" se quiser. As miúdas que se sabem arranjar sobrevivem ao tempo. Sobrevivem às modas. Têm classe. E a classe é profundamente humana. A genética é fascista. A classe é uma superação. É uma conquista diária. Uma miúda "sempre gira" é uma vitória do humano sobre a genética. Sobre a moda. Sobre o que não dura. Sobre a morte. JR

quinta-feira, abril 29, 2004

Pensamento do dia 

Todas as raparigas bem arranjadas são sempre giras. JR

[Já agora, o que pensará o Filipe - esse ilustre esteta da Antiguidade - acerca disto?]

terça-feira, abril 27, 2004

O regresso do filho pródigo 

Ao fim de duas semanas de irresponsável ausência estou de volta à actividade. Aqueles dias no México foram excelentes, e além das magníficas praias e discotecas, também foi possível visitar locais arqueológicos espantosos e aprender um pouco de história. Ficámos instalados na zona costeira chamada Riviera Maia, num hotel a 90 km de Cancun. A península de Iucatão recebeu-nos com pouca humidade, brisa suave e uns agradáveis 25 ºC. Intercalou-se os dias de praia com as excursões aos templos Maias. O povo Maia era, e ainda é fascinante. Possuía uma elite de engenheiros, sacerdotes e aristocratas que dirigiu a construção de templos brilhantes e excelentes observatórios dos astros. Quando os Espanhóis chegaram à América Central, as cidades estavam parcialmente mergulhadas pela selva, pois no século IX a cultura Maia havia entrado em decadência, devido a secas catastróficas e às invasões Toltecas. Hoje os Mexicanos de origem Maia são pessoas extremamente afáveis e tranquilas. Nas povoações as pessoas cumprimentam-se sempre na rua, mesmo que não se conheçam! Um hábito feliz que me fez lembrar as nossas aldeias do Alentejo. Fomos primeiro a Chichen Itza, um conjunto espectacular de templos no centro da península do Iucatão, que incluía uma enorme pirâmide dedicada ao deus Kuculcan, um gigantesco poço de sacrifícios denominado cenote, um observatório de astronomia construído na época em que a Europa vivia mergulhada no obscurantismo da Idade das Trevas (Alta Idade Média), e um espectacular campo de jogos, com dois muros paralelos com seis metros de altura, e dois aros verticais de pedra pelos quais os atletas-guerreiros tinham que fazer passar uma bola de látex maciço pesando 5 kg. Havia duas modalidades: A primeira era a antiga, onde os aros estavam a uma altura inferior e na qual só se podia tocar na bola com as ancas e parte dos antebraços. Para erguer a bola do solo dois jogadores tinham que apoiar a bola de cada lado com as ancas, para depois lhe darem uma violenta pancada com o antebraço... se a bola batia em zonas do corpo desprotegidas originava terríveis nódoas negras e lesões internas várias. Como não se podia pontapear nem agarrar a bola, os jogos prolongavam-se por um dia inteiro, assemelhando-se mais a uma batalha do que a um desporto. No fim, a cidade que perdia o jogo entregava uma quantidade de escravos pré-acordada. A equipa vencida partia eternamente humilhada e a equipa vencedora subia aos píncaros da glória. Glória suprema que era celebrada pelo capitão dos vencedores, que se sacrificava no fim do dia de jogos, perante o júbilo ensurdecedor de um povo embriagado pelo triunfo!
Com o passar dos séculos a competição desenvolveu a velocidade; os aros foram colocados a 5 metros de altura, e a bola podia ser batida com tacos de madeira, o que tornava a prova muito mais dinâmica e ligeiramente menos violenta. Hoje em dia ainda há um festival de Verão em que se simula a competição para os turistas. O que eu não dava para viajar no tempo e viver todas as emoções extremas daqueles fabulosos jogos...
Visitámos também ós últimos templos Maias, junto à costa, em Tulum. Em 1972 ainda se praticavam rituais religiosos no local, e os raros curiosos eram atacados com violência pelos aldeões, que suspeitavam dos estranhos e dos caçadores de tesouros sem escrúpulos. O Exército Mexicano, com o seu bom-senso reconhecido por todos nós, chegou ali numa manhã e deportou a aldeia inteira para alguns quilómetros de distância. Fiquei chocado com tal brutalidade; só para permitir a um grupo de estrangeiros visitar uns templos em ruínas, expulsou-se o único grupo de seres humanos para os quais aquele lugar tinha um valor espiritual insubstituível. De injustiças destas está o mundo cheio, e é bom que não sejam esquecidas.
Fomos por fim a Xel-ha, uma reserva natural onde as águas do mar se encontram com as de um rio; passou-se a manhã a fazer snorkel naquelas águas maravilhosas com peixes de todas as cores!
E por agora é tudo. Em breve mostrarei as fotos. RM

Robert Wilson na Avenida de Roma 

[escrito de madrugada]

O primeiro dia de calor do ano. Abril chega ao fim e a porta da fornalha do Sahara, já entreaberta, oferece a Lisboa o seu primeiro dia de Verão. São duas e um quarto e almoço tranquilamente no McDonalds da Avenida de Roma, virado para a rua. Entregue a um Menu McChicken e a uma Coca-Cola fresquíssima, descanso por momentos dos dilemas e afazeres deste dia e dedico-me a duas das minhas actividades de ocasião: a de esteta militante e a de sociólogo amador. Observo desinteressadamente os ranchos e grupinhos de adolescentes que vão entrando e saindo: top-models e betinhas, efebos e bad boys, putos e pitas mais normais. Uma fauna simpática. Observo-os com mais interesse e tento adivinhar a sua idade. Catorze anos? Quinze? Não sei. Sei apenas que é aquela idade em que a diferença entre rapazes e raparigas é todo um abismo. Observar a diferença entre eles e elas nesta idade é um espectáculo com o seu quê de enternecedor e de melancólico. Eles passando em grupinhos, tontos e inseguros, sempre aos encontrões uns aos outros, fingido não olhar para as raparigas. Falam de futebol e sabe-se lá de que mais. Falam alto. Elas, nos braços nervosos e possessivos de rapazes dois e três anos mais velhos, elas já tão sabidas como eles. Sábias e lânguidas, elegantes e sensuais. Deitadas nos bancos ou pousadas sobre as mesas, fumando lenta e estudadamente. Sabem muito. Observo estas Lolitas fatais e oceânicas e interrogo-me sobre o que será daqueles rapazolas pacatos e inseguros da mesma idade, que as desejam e evitam. Para uns o tempo virá daqui a uns aninhos ou meses. Para outros os anos passarão. Talvez alguns ainda acordem a tempo e as reencontrem naquela idade em que voltarão a ter de facto a mesma idade. Para outros ainda, quando acordarem, talvez seja tarde de mais. JR


domingo, abril 25, 2004

Trinta Anos 



A marcha para o Carmo foi extraordinária pelo apoio popular que agregou, que contribuiu bastante para que o Carmo perdesse a vontade de resistir. Nunca tinha visto o povo a manifestar-se assim. No Carmo, ao chegar houve desde senhoras a abrir portas e janelas até ao simples espectador que enrouquecia a cantar o Hino Nacional. O ambiente que lá se viveu foi de tal maneira belo que depois dele nada mais digno pode acontecer na vida de uma pessoa. (...)
o MFA é um Estado de espírito, por isso nunca pretendeu a institucionalização ou a sua continuação; foi criado com um objectivo e deixou de existir quando o alcançou.


[Fernando Salgueiro Maia, in "Capitão de Abril, Histórias da Guerra do Ultramar e do 25 de Abril", Notícias Editorial/Diário de Notícias, Lisboa, 1997, pp 94 e 100]


(…) foi por um vizinho ensonado que tive conhecimento do golpe militar. Seriam sete da manhã. Talvez fosse melhor, dissera-lhe a minha irmã, que os meus filhos não fossem nesse dia à escola, pois, de regresso de uma “boite”, ela vira alguns tanques na rua. Liguei a rádio. Pessimista, insistia em pensar que se tratava de um golpe de direita. Mas o “Grândola Vila Morena” baralhou-me. Até que ouvi um comunicado, emitido por um comité reunido na Pontinha, no qual, após se informar a intenção de derrubar a ditadura, se pedia ao povo para ficar em casa. Decidi logo sair à rua. (…)
Foram dias de perfeita felicidade. Nas ruas, havia sol, as espingardas enchiam-se de cravos, éramos jovens. (…) Todos os dias, ouvia, na televisão a voz dolente do povo, falando de passadas aflições. Eu queria partir pelos campos, a fim de ensinar os analfabetos, ajudar as mulheres e explicar aos portugueses os seus direitos. Éramos livres, iguais, fraternos. (…)
Quando chegou o Verão, percebi que, dadas as circunstâncias, não fazia sentido continuar a ensinar. Além disso, uma vez que denunciara a farsa dos “trabalhos de grupo”, era vista como uma autoritária, ou seja, uma inimiga. A partir do momento, em Setembro de 1974, em que me fechei na Biblioteca Nacional, o mundo deixou de existir. No trajecto, notava que a cidade se enchera de murais com a gesta do proletariado, lia nos jornais que as greves cresciam, ouvia falar da resistência de uma direita que nada aprendera. (…)
Quando a Revolução chegou a sério, fiquei atónita. Em Setembro de 1975, partia para Inglaterra. Dois anos depois, de regresso, aceitei o governo de Mário Soares como um facto natural. Pelo caminho, perdera as ilusões. Já não era sem tempo.


[Maria Filomena Mónica, in “Os Sentimentos de uma Ocidental”, Quetzal Editores, 2002]


bom,
o que eu queria dizer é que vou pela auto-estrada, a caminho da ponte, hoje dita Ponte 25 de Abril,
vá-se lá imaginar a lógica disto, uns tipos desmoronam as letras pelo pilar abaixo, L A Z S R A A, todas partidas, amontoadas no chão, a malta aos gritos
os fascistas para o Campo Pequeno, o povo unido jamais será vencido
e outras frases igualmente originais e profundas
as letras escavacadas no chão, anos e anos escavacadas no chão,
compreende-se, mas
o que já não se compreende nem se pode compreender é que tenham lá metido o 25 de Abril
P O N T E 2 5 D E A B R I L
não carecendo de demonstração o insofismável facto de que tal data nada tem a ver com tal ponte, podendo-se à vontadinha ter chamado outra coisa qualquer,
por outro lado
há quem argumente, com eventual razão, que o Martim Moniz, da mesma forma, não tem nada a ver, coitado, com o horroroso largo do mesmo nome, nem o Cabral com o Jardim da Estrela e arredores, assim ficando plenamente justificado não só o novo nome da ponte como o fervor revolucionário que lá o pôs num período da nossa história em que, como soe dizer-se, a queda do regime provocou uma crise de valores, sendo necessário esperar alguns anos para que a sociedade em geral e cada um de nós em particular encontrasse novas bitolas que não fossem nem as antigas nem essoutras que entraram de escantilhão pela cabeça das pessoas e que iam dando cabo desta porcaria toda


[António Borges de Carvalho, in “Os Cavalos de Tróia”, Publicações Europa-América, 2000]

sábado, abril 17, 2004

Um poema para o Ricardo 


Isla Cozumel, México


PRIMAVERA A LA VISTA

Pulida claridad de piedra diáfana,
lisa frente de estatua sin memoria:
cielo de invierno, espacio reflejado
en otro más profundo y más vacío.

El mar respira apenas, brilla apenas.
Se ha parado la luz entre los árboles,
ejército dormido. Los despierta
el viento con banderas de follajes.

Nace del mar, asalta la colina,
oleaje sin cuerpo que revienta
contra los eucaliptos amarillos
y se derrama en ecos por el llano.

El día abre los ojos y penetra
en una primavera anticipada.
Todo lo que mis manos tocan, vuela.
Está lleno de pájaros el mundo.

OCTAVIO PAZ


Pétalas caídas (IX) 

O tempo passou por Ivone, que tinha então, tal como eu, dezasseis anos, vivia em Viana do Castelo e não se dava com ninguém. Eu nunca conheci Ivone. Ao todo, devo-a ter visto umas três, talvez quatro vezes. E nunca falámos, em parte porque não calhou, em parte porque me faltou sempre coragem e decisão para a abordar. Que poderei dizer sobre ela, se tudo o que tenho não passa de uma experiência vazia e decepcionante, uma memória mais insegura do que todas as memórias? Ivone podia existir mas, em certa medida, existia mais na minha cabeça do que em qualquer outro lugar. Tal como todos os que a cercavam, eu era um envergonhado pelo seu magnetismo, pela sua tranquila adolescência, pela ordem inquebrável dos seus sentimentos. Ela limitava-se a aparecer, limitava-se a estar, e parecia-me imensamente protegida de tudo quanto nos fustigava. A mim, interessava-me, confundia-me que ela não possuísse angústias ou abalos, que ela fosse sempre a mesma, tão diferente, tão severa, tão superior à nossa franca obtusidade. Ivone surpreendia-nos, ensinava-nos. Talvez fosse a nossa natureza, a nossa sofreguidão. Podemos ignorar a angústia porque somos superiores ou porque somos superficiais. Ivone não era superficial. A sua maneira direita sem altivez, a sua simpatia púbere mas reflectida, não eram superficiais, nada tinham de superficial. Eram o que tinham de ser, eram o que só mesmo podiam ser, eram ela própria. Como disse, eu nunca conheci Ivone. Quem a conhecesse naquele tempo, não hesitaria em fazer pouco da minha imaginação lânguida, da impropriedade dos meus sentimentos. Mas foi isto que me ficou de Ivone. Nunca quis saber quem ela era, muito menos quis saber da pessoa em que depois se tornou. Eu não me decidia. À altura, era-me indiferente pensar que, num futuro próximo, me lembraria de alguém. Pouco, quase nada, me despertava o interesse. E eu olhava para Ivone e via uma bela rapariga de dezasseis anos que não precisava de crescer, que não iria crescer mais. Era o que me bastava. Para mim, era tudo o que havia a saber.

Pedro Lomba, in "Flor de Obsessão", 8 de Julho de 2003


Éramos vários na mesma casa. Cada um tinha um espaço que colidia facilmente com o espaço dos outros. Um espaço pequeno, demarcado, que conhecíamos demasiado bem. Sempre houve necessidade de identificar o espaço de cada um, os objectos, as roupas, os livros. Primeiro, com as iniciais dos nossos nomes, depois, com números, quando o tempo tornou indecifráveis as letras; no fim dos números, com traços, traços curvos e disformes, que acabámos todos por decorar. Tudo o que tínhamos, encontrava-se dentro da casa e dentro de cada espaço. Sempre soubemos que não devíamos usar as coisas dos outros, que o uso de objectos alheios nos estava vedado devido a uma convenção estranha e indiscutida. Podíamos andar livremente pela casa, frequentar as zonas dos outros sem necessidade de aprovação ou consentimento. Mas todos conhecíamos a obrigação de nos submetermos, sempre que o titular de cada divisão nos pedisse para sair. Uma ou outra discórdia nunca puseram em causa este princípio que, no fundo, nos pedia obediência mas, ao mesmo, nos dava autoridade sobre o nosso próprio espaço. A casa não era feita só de espaços individuais mas tinha também espaços comuns: salas, lavatórios, corredores estreitos onde nos cruzávamos, a cozinha pequena onde não comíamos ao mesmo tempo e onde não cozinhávamos ao mesmo tempo. Esses espaços comuns permitiam que nos encontrássemos, muitas vezes de passagem e com um lutuoso embaraço. O diálogo não era então frequente. Habituados ao silêncio, quase nos esquecíamos que era necessário dizer qualquer coisa, expressar, pelo menos, as razões que nos mantinham juntos. Um silêncio a seguir a outro silêncio agravava este estado e, quanto mais nos calávamos, menos vontade tínhamos de fazer as coisas de outra forma. Em casos muito raros, as coisas mudavam e era possível assistir a uma ou outra conversação inesperada que, mesmo assim, não servia para falarmos de nós próprios. Ninguém podia falar de si. Esse era um tema intocável, sigiloso, um tema que encerraria todos os momentos de abertura, se por acaso fosse abordado. Talvez a casa possuísse uma disciplina, uma imanência, uma noção de sacrifício. Cedo ou tarde, encerravam-se portas, fazia-se silêncio, recolhíamo-nos. A nossa excitação era falsa. Queríamos solidão e solidão era o que tínhamos. As horas passavam mas as luzes permaneciam acesas. Ao contrário das portas. As portas estavam sempre fechadas.

Pedro Lomba, in "Flor de Obsessão", 22 de Julho de 2003




quinta-feira, abril 15, 2004

The Suffering Song(s) 



Lá estarei amanhã no Coliseu para ver os Tindersticks e, para o mês que vem, na Aula Magna para ver os Lambchop, assim Deus me dê saúde e força. Mas um concerto daqueles que faria marcar cruzinhas no calendário e suspirar pelo passar dos dias, esse sim, seria o dos Willard Grant Conspiracy, que nunca mais regressam a Portugal, já lá vão cinco aninhos. Robert Fisher & Cia assinaram em 2003 aquele que, para mim, é um dos mais notáveis álbuns de Alt-Country que tenho ouvido nos últimos tempos: Regard The End, todo ele uma viagem poética e cinemática pela melhor tradição da folk gótica Americana, todo ele um depositório de melancolia, a espaços verdadeiramente lancinante. Nick Cave estaria orgulhoso de ter escrito uma canção como The Ghost Of The Girl In The Well, estou certo. Por causa dela terei cuidado da próxima vez que o puser a tocar com gente por perto. Nunca tinha visto a minha mãe chorar por causa de uma simples canção. E não quero voltar a ver. JR

PS - Elvis Costello ou os Lambchop, na mesmíssima noite do dia 8 de Maio é, de facto, um dilema dos grandes. Mas não exageremos, amiguinhos. Ponham-me estes senhores e esta senhora em Lisboa na mesma noite e aí sim, vão ver o que é um homem destroçado. Isso sim, são questões fracturantes.

quarta-feira, abril 14, 2004

Fazer de uma data histórica aquilo que ela não é 

Sobre o 25 de Abril direi, como início de conversa, o seguinte: penso que todos os Portugueses de bem devem, trinta anos depois, estar gratos ao capitão Salgueiro Maia e aos seus corajosos camaradas de armas por:

- terem deposto um regime ditatorial que há 48 anos oprimia Portugal e os Portugueses

- terem posto fim a uma guerra sem solução militar, que há treze anos consumia a economia e os recursos do país e responsável por um sofrimento humano de enormes proporções na Metrópole e no Ultramar

- terem posto de novo Portugal, que se tinha tornado um quase estado-pária no seio da comunidade internacional, ao lado das outras nações livres e democráticas da Europa Ocidental

- permitirem a libertação dos presos políticos, a abolição da censura e o regresso das liberdades fundamentais há várias décadas consagradas e praticadas no resto do mundo livre

Vistos em perspectiva, estes trinta anos foram de um progresso espectacular, quer no plano político, quer no plano económico ou social. Podíamos ter progredido mais e melhor em alguns campos? Podíamos. As coisas podiam ter sido conduzidas de maneira diferente? Podiam. Mas as coisas são como são e foi graças ao 25 de Abril que tudo isto aconteceu. Aos jovens oficiais daquela manhã de Abril devemos gratidão. E isto para mim é a bottom-line.


Dito isto, alguns pontos me parecem importantes:

Concordo com Francisco José Viegas quando qualifica os actuais festejos oficiais da efeméride como "uma reminiscência do republicanismo que todos os anos vai em romaria lançar foguetes nas praças dos municípios, defender o 5 de Outubro e dar vivas ao dr. Afonso Costa". Da geração nascida após o 25 de Abril, suspeito que apenas uma ínfima minoria se reveja minimamente no folclore gasto das actuais comemorações, nas secantes sessões solenes no Parlamento, nos discursos invariavelmente circunstanciais e partidários. Os marchantes da Avenida, apesar de pacifica e tranquilamente celebrarem à sua maneira a efeméride, têm, a cada ano que passa, um aspecto mais datado e serôdio. Saudosista até, diria eu. E muitos daqueles que marcham não recordam com saudade apenas aquela luminosa manhã de Abril, senão também essa orgia bolchevique que ficou conhecida por PREC.

Quer queiramos quer não, o tempo passa. Inevitavelmente, daqui a algumas décadas, quando tiverem desaparecido todos ou quase todos aqueles que viverem aquela data histórica, acontecerá ao 25 de Abril aquilo que já há muito aconteceu ao 5 de Outubro: tornar-se-á, apenas e só, uma data histórica e um feriado. E em relação a isto podemos tomar duas atitudes, a meu ver igualmente legítimas:

Uma mais fatalista, a de aceitar que as coisas são mesmo assim, que o tempo não volta para trás e que mais cedo ou mais tarde esta data será apenas mais um feriado. Outra, mais voluntarista e de maior empenho cívico, que procura ver o 25 de Abril de 1974 a uma nova luz e, sobretudo, reformar e renovar os festejos de modo a atrair de novo a juventude e consciencializá-la para a importância histórica e cívica desta data.

Foi precisamente essa segunda a atitude aquela que este Governo tomou. Ao que sei, a iniciativa terá partido do Ministro da Presidência Morais Sarmento (político pelo qual tenho estima e alguma simpatia), que nomeou como comissário das comemorações o Prof. António Costa Pinto, personagem esta que terá a seu cargo iniciativas tais como: a edição de um livro e um CD-ROM com vasta evidência estatística das transformações pelas quais Portugal passou nestes trinta anos, um congresso sobre a democracia portuguesa em Novembro, na Fundação Gulbenkian, trinta personalidades nascidas depois de 74 a serem homenageadas, cursos de Verão promovidos pela Universidade Nova de Lisboa, um documentário sobre o regime democrático a ser exibido pela RTP em Outubro, lançamento do Prémio Melo Antunes para jovens ensaístas, entre muitas outras iniciativas. Tudo bem.

Infelizmente, a polémica está já lançada e tudo por culpa do slogan "Abril é Evolução". É certo que "Abril é Revolução" parece mais próprio de um cartaz do Bloco de Esquerda, mas não penso que aquele slogan, no qual falta o “R” seja inocente. É uma provocaçãozinha. Pequenina e atrevida, mas é uma pequena provocação. É, como muito bem me disse o Ricardo, a escolinha Mariana Cascais (já aqui falei de raspão sobre esta escolinha) a fazer das suas. Como já disse atrás, não me revejo na beatice republicanista na qual os festejos do 25 de Abril há muito caíram. Mas também não me revejo na reescrita espertalhona e pós-moderna de um evento histórico ainda bem fresco na memória de muitos portugueses.

Façamos por isso do 25 de Abril apenas aquilo que foi: um golpe militar levado a cabo por corajosos oficiais de baixa patente e que desencadeou um conjunto de eventos que vieram a tornar Portugal um país incomparavelmente mais respirável. Nada mais e nada menos. Não façamos um fundacional e messiânico 4 de Julho do dia em que o povo e as chaimites saíram à rua. Convenha-se: a descolonização ultramarina que se seguiu foi pouco mais que irresponsável e pouco menos que criminosa, a calma apenas voltou às ruas a 25 de Novembro de 1975, os militares apenas regressaram aos quartéis com a revisão constitucional de 1982, a economia de mercado apenas foi efectivamente atingida com a revisão constitucional de 1989. Portugal levou quinze anos a fazer aquilo que muitas nações da Europa Central e de Leste fizeram de uma só vez no início dos anos noventa, depois de se libertarem do jugo soviético, ao adoptarem constituições modernas e realistas e ao empreenderem vigorosas e corajosas reformas económicas que hoje lhes granjeiam performances económicas com as quais Portugal, por enquanto, apenas pode sonhar.

Mas está claro, toda esta polémica é espuma. O programa oficial das comemorações (ou aquilo que dele sei pela comunicação social) parece-me sensato e bem gizado, tendo em vista os objectivos a que se propõe - rejuvenescer a efeméride - e isso é o que verdadeiramente conta. Mais a mais, vivemos um trigésimo aniversário, data com o seu quê de cabalístico e que naturalmente traz algumas emoções mais revolucionarias à flor da pele. Para o ano serão trinta e um anos, um número primo e, provavelmente, mais umas comemorações tão banais como as de qualquer outro ano. Já não será uma data para pôr na lapela. E nessa altura, claro está, este Governo já não vai querer saber da porcaria do 25 de Abril para nada. JR

terça-feira, abril 13, 2004

Fadista! 

Aldina Duarte, elegantíssima e vestida de preto, ofuscou por completo Ana Sousa Dias, que a entrevistava ontem à noite no seu programa na "Dois". Não tive ainda opurtunidade (hélas) de ouvir nada desta nova diva, mas fiquei maravilhado com ela. Para além de ser a Gillian Anderson portuguesa (ou a Valeria Bruni-Tedeschi, quando sorri), Aldina é uma força da Natureza: profundamente intuitiva, com uma poderosa inteligência emocional e um sentido de humor apuradíssimo, é dona de uma força e de um carisma invulgares e profundamente cativantes. Ou muito me engano ou ainda vou gostar muito desta senhora. JR

segunda-feira, abril 12, 2004

Viva México! 

Com que então para o México, hem? Que inveja! Olha, e já agora, se encontrares a Salma Hayek podes dar-lhe um beijinho por mim? JR

domingo, abril 11, 2004

Adios! 

De malas aviadas para o México, este Menino despede-se de todos e até daqui a uma semana! Desejo-vos uma Páscoa feliz, recheada de sol e tardes amenas. Um grande abraço para todos vós! RM

segunda-feira, abril 05, 2004

Kurt Cobain (20.02.1967 - 05.04.1994), in memoriam 



Foi Pete Townshend, líder dos lendários The Who, quem disse recentemente que Kurt Cobain pouco mais tinha sido que "um miúdo estúpido e com problemas". Descontando a crueldade da afirmação – estamos, afinal de contas, a falar de alguém que já não faz parte deste mundo -, sou forçado a dar alguma razão ao velho ancião. Como role model admiro muito mais Eddie Vedder. E como mártir criador admiro muito, muito mais, o grande, grande Layne Staley, o falecido vocalista daquela que foi (e ainda é), sem dúvida nenhuma, a minha banda preferida do movimento grunge: os Alice in Chains. Troco Dirt por toda a discografia dos Nirvana. Mais a mais, o endeusamento de Cobain provém desse estúpido e bárbaro acto de canonização que a nossa moderna cultura ocidental tolera e consagra: o suicídio. Mas eu ainda me lembro do dia em que se soube da morte de Kurt. Fiquei triste nesse dia. Eu também cresci a ouvir os Nirvana. Não podia deixar de lembrar esta data. JR

Pétalas caídas (VIII) 

Não sou de conselhos. A minha aptidão para aconselhar é fraquíssima. Se eu fosse bom a aconselhar, estaria na política, não aqui. Acreditem: já experimentei e não resultou. Lembro um dia, uma noite. Estou em casa e recebo a visita de uma antiga colega de escola, querendo conversar comigo. Saio prontamente e tudo me passa pela cabeça naquele instante. O homem ganha um convencimento muito peculiar, muito idiota quando é abordado por uma mulher. Somos míseros, patéticos e só percebemos depois. E eu sigo com ela para o carro, sem saber bem o que esperar, derramando a minha curiosidade pela rua, pelos candeeiros, por quem nos cercava. No fim, ouço-a falar sobre o namorado que, a um mês do casamento, decide ser infiel. Não sei o que vocês diriam, mas eu disse o óbvio, o previsível, o mais obtuso. Disse-lhe, num acesso de mau discernimento: «vais ter de o deixar». Ela detestou o recado. Não queria que eu lhe dissesse isto, que eu só tivesse isto para lhe dizer. Todos lhe comunicavam o mesmo, todos a incitavam a cancelar o casamento; e ela esperava de mim outra coisa, que eu convencesse contra ela mesma que era melhor continuar. Mas eu não consegui, não fui capaz. Não sirvo para conselhos, para opiniões a pedido. Meses depois, encontro-os na rua, brandos, recém-casados, contidos. E ela passou por mim, fingindo que não me via.

Pedro Lomba, in "Flor de Obsessão", 10 de Outubro de 2003


Aos domingos, eu passeava sem grande convicção até ao Cais das Colunas. Turistas amontoavam-se na Baixa, vagabundos, pedintes, velhos, de vez em quando uma rapariga apressada a correr para as suas aulas de música. Eu descia a Rua Augusta até ao Cais das Colunas para poder ver muitas pessoas ao mesmo tempo, vidas diferentes, figuras, rostos, corpos em trânsito, a caminho. Durante a semana, encontrava-se mais gente mas tudo era mais vagaroso aos domingos, por isso mesmo mais observável. Eu só queria observar pessoas, não queria conhecer ninguém, abordar ninguém. Não queria experiências. Repelia com maus modos aqueles jovens que nos surpreendem na rua, perguntando se temos tempo, primeiro quinze, depois cinco minutos. Os desprevenidos que cedem são conduzidos para uma sala escura onde acabam a ouvir gente cretina. Se me perguntassem: «Então, porquê andar por aqui todos os domingos, numa zona suja da cidade, a olhar para o nada, a perder tempo?», eu não saberia como responder. Eu andava por ali, todos os domingos, a olhar de facto para o nada, a perder tempo. Mas não via nisso problema. Era o que eu queria fazer. Devemos fazer o que queremos fazer. Todos os domingos, sem que sentisse estar a atraiçoar-me, sem que me violentasse, a minha vida começava no Rossio, perto da estação de comboios. Depois, seguiam-se por esta ordem: Praça da Figueira, Rua Augusta, Terreiro do Paço, Cais das Colunas. Duas a três horas. Uma distância curta, percorrida lentamente, muito lentamente. Gente que passava. Vidas. Destroços de vidas. Alguns vultos. Claro, nada acontecia porque nada era suposto acontecer. Às vezes, nada nos acontece e temos de aprender a viver com esse vazio, sem que isso nos dê angústia ou acédia. Mover-nos todos os dias. Trabalhar. Sentir a passagem do tempo. Suster a inércia. Não esperar demasiado. Conseguir adormecer.

Pedro Lomba, in "Flor de Obsessão", 1 de Outubro de 2003

domingo, abril 04, 2004

Bravura e Glória 



Esta semana louca impediu-me de felicitar a nossa brilhante Selecção Nacional de Râguebi, cujo 15 venceu o Campeonato europeu do Torneio das Seis Nações B. O último jogo, contra a Rússia, era decisivo, e só no último momento um remate certeiro entre os dois postes, efectuado por Gonçalo Malheiro, deu a vitória por 19-18 a Portugal.
Esta selecção de râguebi é uma instituição extraordinária. Nenhum jogador é profissional, tendo que conciliar os treinos, viagens e competições com os seus empregos. Depois, os apoios são escassos, neste país do futebol. Eu jogo e vejo futebol todas as semanas, mas não suporto o excesso de programas dedicados a comentar jogadas, arbitragens e dirigentes, pois além de ser maçador, dá uma visibilidade excessiva a esse desporto, retirando aos outros a atenção e as ajudas devidas. E por fim, é sempre motivo de orgulho para um povo como o nosso, sem grande estatura nem forte poder físico, vencer outras selecções num jogo tão duro e combativo quanto este (eu que o diga, pois já fiquei semi-inconsciente num dos treinos). Foi a bravura, associada às tácticas do seleccionador Tomaz Morais, que nos proporcionou esta vitória tão saborosa. Os jogadores, o pessoal técnico e a Federação estão todos de parabéns!
Infelizmente, o futuro próximo não parece ser muito radioso. A selecção não foi recebida com a pompa e circunstância devidas, o triunfo passou relativamente despercebido, em ano de Euro e retoma económica os fundos para o râguebi continuam escassos e, o mais importante, enquanto não tivermos um campeonato com jogadores profissionais, com assistências de milhares de adeptos e transmissões televisivas (como mencionou o seleccionador) nunca seremos convidados para participar no exclusivo Torneio das Seis Nações A, onde têm lugar cativo a Inglaterra, a França, a Escócia, o País de Gales, a Irlanda e a Itália. E isto não depende do Governo; depende apenas das pessoas se começarem a interessar, em massa, por outros desportos que não o futebol.
Agora o objectivo é o apuramento para o mundial de 2007. Vamos a isso! RM

quinta-feira, abril 01, 2004

Avós e netos - Jardins Gulbenkian (III) 


Jardins Gulbenkian, 10 de Março de 2004

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