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sábado, janeiro 29, 2005

A Torre de Beja (VII) 

O meu primo afastou-se do grupo e segredou-me:
- Vou ali buscar uma amiga e depois vou lá ter convosco.
Eu ia abrir a boca de espanto, mas em vez disso limitei-me a acenar que sim. Não estou habituado a vê-lo com grandes intimidades em relação a raparigas, mas ainda bem que tudo mudou. Estou a ver que os ares de Beja lhe estão a fazer bem. Separámo-nos e regressei para junto do grupo. Ao informá-los do destino do meu primo, seguiram-se os piropos inevitáveis. O grupo dirigiu-se para o bar, que estava mesmo no ponto: pista de dança cheia, mas com lotação suficiente para se dançar e movimentar à vontade. Os rapazes explicaram-me que a malta da escola agrária tinha lugar cativo numa zona da pista, por isso mesmo que um deles chegasse sozinho, bastava-lhe encaminhar-se para lá e juntar-se à curtição. O meu primo chegou depois, com a sua amiga, e até às tantas dançou-se, bebeu-se, enfim, todos se divertiram. Bom, nem todos. O moço de 18 anos, desiludido pela falta de parceira para uma dança mais íntima, estava um pouco murcho perto do fim. Nessa altura parei de dançar e afastei-me do grupo. Saí para o exterior onde estava um frio convidativo a uma boa meditação:

Era excelente ver a alegria do meu primo e também dos outros rapazes, todos eles com uma companheira. No entanto, caso tivesse chegado ao bar àquela hora, teria ficado preocupado. O ambiente exibia a decadência espiritual de toda uma civilização. Aqueles jovens, mais ou menos embriagados, pareciam completamente perdidos e o seu país (cujo futuro será construído por eles), condenado a um fracasso histórico completo. Perguntei a mim mesmo como foi possível (num passado imensamente longínquo, quando mal se podia considerar Portugal um país) vencer adversários que nos eram totalmente superiores quer a nível cultural quer a nível militar...
RM

sábado, janeiro 22, 2005

Non, ou a vã glória de mandar 

Antes de se iniciar a projecção de um filme no cinema, geralmente são apresentados os trailers de outros. Vi recentemente o trailer do próximo filme do realizador António de Oliveira, sobre Dom Sebastião. Para mim, o Sebastianismo é o sentimento mais forte e genuíno que o nosso povo possui. Eu próprio tenho a convicção firme que o nosso país apenas pode avançar com a inspiração e liderança de um grande líder.
E foi esse mesmo sentimento nacional que levou em 1578 a um desastre de proporções horrendas: Alcácer Quibir.
Nenhum outro período da nossa história encerra maiores lições do que aquele que decorreu entre os anos anteriores à fatídica batalha e a chegada ao poder da dinastia Filipina.
Foi por tudo isto que fiquei desiludido com o trailer: as cenas passaram-se todas numa sala obscura, sem qualquer dinamismo nem expressão épica. Um tema tão vasto e grandioso não pode ser aprisionado assim, pois cria nos espectadores uma desagradável sensação de claustrofobia cénica. Decidi que vou ver o filme, pois se for mau, poderei confirmar de facto que não me enganei.
António de Oliveira disse brilhantemente que não tem nada contra os filmes americanos, os espectadores desses filmes é que parecem ter algo contra ele. Depois de ter visto o megalómano fiasco que foi o filme "Alexandre" dou ao nosso veterano realizador toda a razão. Ele pelo menos não desperdiça vinte milhões de contos num mau filme.
RM

segunda-feira, janeiro 17, 2005

A Torre de Beja (VI) 

- Tenho uma revelação a fazer-te.
- Diz.
- Vou morrer.
(Pausa; silêncio)
- Todos vamos morrer, mais tarde ou mais cedo.
- Eu sei que vou morrer mais cedo.
RM

domingo, janeiro 16, 2005

A Torre de Beja (V) 

- Esta caipirinha é um verdadeiro desastre!
- Qual Mourinho qual quê! A gente safa-se bem com quem ficou, enquanto vocês estão apenas na UEFA!
- O gajo de Évora era doido varrido! Não o vejo desde essa altura.
Silêncio. Adoro o silêncio. Sobretudo quando estou bem acompanhado, envolvido por várias conversas diferentes e simultâneas. Deixo de falar, continuo a ouvir e levanto voo, afastando-me sem parar, até atingir os limites mais distantes da minha imaginação. Enquanto os rapazes falavam, voltei a confirmar as maravilhas de sonhar acordado: pode-se manter um certo grau de atenção ao que nos rodeia, ao mesmo tempo que conscientemente nos podemos ausentar do local. São estes fantásticos exercícios espirituais que reforçam a minha agilidade mental, e não perco uma única oportunidade para torná-la mais flexível, elástica e dinâmica. Em poucos minutos, viajei até à aldeia dos avós, onde no Verão tomávamos banho nos tanques de rega, secando em seguida deitados nas largas lages de xisto; comíamos figos maduros e os meus primos (com apenas cinco anos) abriam sozinhos, à facada, enormes melancias, frescas e sumarentas. Os passeios que fazíamos pelo campo eram quase intermináveis, sendo aquela a forma mais feliz de conhecer o mundo. O sol permitia regressar a casa depois das nove da noite, e depois do jantar voltávamos à estrada, onde nos deitávamos no meio do alcatrão quente. Não passava carro nenhum, enquanto olhávamos para o cosmos, à espera das estrelas cadentes, cuja aparição desencadeava em nós sentimentos profundos, que cada um guardava para si.

O café estava a terminar. Um dos elementos levantou-se, seguido de outro, e outro. Estavam eufóricos. Dirigiram-se para um prédio próximo, onde estava um grupo de quatro raparigas, que incluia as suas namoradas, companheiras e amigas. Quando elas desceram a euforia dos rapazes foi substituída por uma alegria ligeiramente nervosa. De tal forma eles estavam atabalhoados, que ninguém me foi apresentado, e assim seguimos para os bares. Fiquei impressionado com o contraste brutal entre a confiança dos rapazes na conversa do jantar, onde falavam de raparigas com o maior dos à-vontades, e este surto de infantilidade, que os colocava não na posição de companheiros delas, mas sim na de miúdos. Um dos moços (caso não se recordem, era o primo de um dos rapazes da casa, com 18 anos de idade) já era conhecido das raparigas. Elas fizeram uma festa quando o viram, mas não no melhor sentido: trataram-no como se ele fosse uma criança, o que o irritou.
A conversar com o meu primo, fiquei com a ideia que o moço foi a Beja para curtir, mas ao que parece não ia ter muita sorte...
As ruas de Beja à noite são calmas, frias e bem iluminadas. Enquanto caminhávamos, o meu primo apresentou-me uma rapariga conterrânea, e com a conversa sobre paisagens comuns quebrou-se uma certa distância que sempre existe quando não se conhece as pessoas.
Num cruzamento, o meu primo parou de repente. Pediu-me que nos afastássemos, e discretamente fez-me uma revelação. Aquilo que me revelou foi tão chocante que quase caí para o lado.
RM

quarta-feira, janeiro 12, 2005

A Torre de Beja (IV) 

As bebidas iam chegando e circulando, sem que fosse necessário pedi-las. Cerveja e vinho em fartura, que rapidamente aqueceram o ambiente e as conversas. Pequenas e grandes histórias, façanhas apregoadas aos quatro ventos, gargalhadas animalescas, um ou outro insulto, um ou outro encontrão, uma ou outra ferida a escorrer sangue.
Era noite de festa, pois Dom Gonçalo Mendes da Maia, O Lidador, fazia mais de setenta anos. Em seu redor encontravam-se velhos companheiros de armas, os mesmos que haviam escalado as ravinas de Santarém e assistido à rendição da magnífica Lisboa após um cerco como nunca se vira em Portugal. Mas também jovens cavaleiros, recém-chegados daquele Norte granítico, que ao longo de séculos gerara safras inesgotáveis de rapazes duros, violentos e visceralmente patrióticos (desde que, é claro, os interesses da pátria coincidissem com os seus próprios, o que apenas sucedia nesta fronteira selvagem e desumana). Um pouco afastados dos grandes senhores, encontravam-se os cavaleiros vilãos e restante canalha que haviam subjugado há mais de uma década as grandes fortalezas Alentejanas. Descreviam feitos de bravura, e também as infâmias cometidas nas entradas sobre as aldeias. A almogaveria, ou seja, a arte de penetrar no coração do território inimigo, causando a maior devastação possível, atingira com estes homens um apogeu tremendo, abrindo passagem para que a máquina militar do jovem estado português avançasse para sul, num percurso que apenas o oceano poderia travar. Mas no outro lado das águas, no mais profundo deserto, uma casta de homens puros restabelecera os velhos princípios do Islão; espalharam-nos por todo o Magrebe e esmagaram tudo e todos os que se encontravam no seu caminho. Eram os Almóadas, a grande esperança de todos os que ao longo dos últimos cem anos haviam assistido ao avanço imparável das hostes cristãs. Rapazes mouros que se entregavam ao ócio, à delinquência e à imoralidade, passaram de repente a pegar em armas e a lutar por uma causa verdadeira, uma causa que lhes devolveu a força espiritual que parecia estar condenada há muito tempo. Os exércitos, os bandos e as tribos atravessaram em massa o estreito de Djebel Tariq e chegaram ao próspero Al-Andaluz. Os tambores berberes espalharam o seu som aterrorizante por todo o sul da península, numa ofensiva avassaladora que prometia terminar apenas nos Pirenéus, deixando as planícies, as colinas e as florestas tingidas com o sangue de todos os infiéis.

No alcácer de Beja, naquela noite de festa, bebedeira e comportamentos grotescos, o ruído permanente intoxicava todas as mentes excepto uma. Dom Gonçalo Mendes da Maia permanecera toda a noite no mais perfeito e sublime silêncio. Só ele, e mais ninguém, conseguia ouvir os tambores de guerra que se aproximavam cada vez mais depressa. Foi nesse momento que viu, como só os verdadeiros heróis o conseguem, o que seria o seu destino. E foi por isso mesmo que não sorriu.
RM

terça-feira, janeiro 11, 2005

A Torre de Beja (III) 

Após sairmos de casa, dirigimo-nos ao café, o ponto de partida para a noitada. As ruas possuíam uma tranquilidade tão agradável, que eu me sentia em total segurança.
Era como se esta cidade tivesse sido assim sempre pacífica desde o início dos tempos.
Sem dar por isso, mencionei estes pensamentos em voz alta, e os rapazes explicaram-me que as noites eram sempre seguras, desde que nos mantivessemos afastados de certas bebedeiras, e também dos drogados.
Eu: - Drogados, aqui em Beja?
- Claro que sim. Os drogados estão em todo o lado, a diferença é que aqui são muito menos do que em Lisboa.
- Eu: - E vocês já tiveram alguma chatice por cá?
- O único a ter problemas foi este amigo do tintol, que se afastou de nós numa noite, e se deitou numa viela às tantas da manhã, para só acordar na tarde seguinte. Como é óbvio, "limparam-lhe" a carteira.

Distraídos com a conversa, chegámos ao café. O pessoal instalou-se, chegaram as chávenas fumegantes com o seu precioso conteúdo de cafeína, um rapaz pediu uma imperial e outro pediu uma caipirinha. Ainda se falava na vitória do Porto sobre o Chelsea, pois um dos rapazes era adepto ferrenho dos azuis e brancos. Foi nesse momento que me lembrei do que o puto estivera a fazer na salinha, enquanto víamos o jogo: tinha uns apontamentos em cima do joelho, e inseria frenéticamente dados na calculadora gráfica. Perguntei-lhe o que estava a estudar.
- Estou a fazer umas cábulas para o meu exame de quinta (estávamos na terça à tarde!). Isto dá cá um trabalhão! Nem vou estudar mais nada!
Os outros riram-se. Eu não acreditava no que estava a ver. Mais chocante que as estatísticas do nosso sistema [soviético]de ensino, é o contacto directo com os nossos estudantes e com a sua forma de estar numa escola. Lanço ainda mais uma farpa: com os professores da minha antiga faculdade, este moço só conseguiria passar com dez numa cadeira após cinco dias de estudo intenso (8 horas/dia). Mas ao que parece há em Beja alguns professores com critérios de avaliação bastante diferentes...Uma semana depois eu ficaria a saber que o teste do puto lhe correra razoavelmente bem!
RM

domingo, janeiro 09, 2005

Juro que os vi juntos 

Neste sábado, estava a ler o Expresso quando o impensável aconteceu. Daniel Oliveira e João Pereira Coutinho estavam lado a lado, separados por pouco mais de um palmo.
No entanto, como se tratava apenas das suas fotos, o embate físico não chegou a ocorrer. Ainda hoje recordo com tristeza a lamentável polémica que ocorreu entre estes dois homens, e que teve como consequência nefasta a destruição daquele que era na altura o melhor blogue portugês. Como tenho uma perspectiva da vida imensamente mais orgulhosa que os companheiros de Coutinho, eu nunca teria abandonado um companheiro de blogue, por mais duras que fossem as palavras por ele escritas.
Ao ler as colunas de ambos no Expresso, reparei numa diferença assombrosa: a coluna de Coutinho é escrita com a independência e irreverência a que desde sempre nos habituou, enquanto que a de Oliveira revela a presença sufocante da ideologia do Bloco, que o impede de respirar e ser mais criativo (e interessante) no que escreve.
RM

sábado, janeiro 08, 2005

Rir é o melhor remédio 

"I`m gonna go/to hell/when I die!..."
Esta é apenas uma das muitas loucuras proferidas pelo fantástico Conan O`Brien, cujo programa (SIC Comédia, todos os dias da semana às 22h) me permite libertar as gargalhadas que a triste realidade nacional teima em reprimir. Desde a apresentação às entrevistas, passando pelos sketches hilariantes, eis um programa onde (quase) todos os excessos são possíveis. Uma noite o próprio Conan afirmou que tinha saudades dos primeiros programas que apresentou, "...em que podia morrer alguém a qualquer momento!". É o tipo de frases improvisadas em que poucos superam este genial americano de origem irlandesa. O produtor é que por vezes se preocupa, mostrando ao Conan uma grande placa onde está escrito: "We`re in trouble again!".
No entanto, não há aqui os excessos a que o Herman Sic nos tem habituado. Os convidados nunca são humilhados, não há bruxos nem bruxas, e há uma equipa de humoristas que trabalha com afinco para garantir o divertimento dos espectadores.
A isto eu chamo bom entretenimento. E sempre que vejo aquele duende louco aos pulos no ecrâ, tenho a certeza que estou prestes a usufruir de uma das mais nobres actividades humanas: a alegria.

Example
RM

Só mesmo para quem ainda não sabe 

O mais recente colaborador do blog Respublica sou eu. Em boa hora o Filipe decidiu criar uma equipa dinâmica para manter a quantidade dos conteúdos, cuja qualidade, aliás, esteve desde o início ao nível do melhor que se escreve na blogosfera.
RM

quarta-feira, janeiro 05, 2005

Três em um 

O PPD-PSD "convidou" Pôncio Monteiro para número dois nas listas do Porto. Pôncio deu uma facada nas costas do PSD.
O PPD-PSD "convidou" (convidar é um eufemismo brutal!) Cavaco Silva a participar num cartaz de campanha. Cavaco deu uma facada nas costas do PSD.
O PPD-PSD "convidou" a escritora Margarida Rebelo Pinto para as listas de deputados. A escritora deu uma facada nas costas do PSD.
Está assim demonstrada a grande cabala involuntária cujo único objectivo é garantir a maioria absoluta para o PS e a humilhação da social-democracia. No fim de contas, temos todos que dar a razão a Rui Gomes Silva, o único que previu que esta tenebrosa conspiração ia ser executada.
PS: o mais deplorável nesta situação é que José Sócrates vai vencer as eleições sem precisar de demonstrar que tem competência para o cargo de Primeiro-ministro. Pessoalmente, não sei em que partido vou votar.
RM

terça-feira, janeiro 04, 2005

A Torre de Beja (II) 

O grupo evidenciava um enorme nervosismo. O frio contribuia para aumentar os tremores de todos. Avançavam por entre a escuridão, levando consigo velhos demónios pessoais, velhas contas ajustadas ou por ajustar. Eles eram os deserdados, eles eram os intocáveis, eles eram os malditos. As trevas que transportavam camuflavam-nos, tornando a própria noite ainda mais escura e gélida.
Imersos nos seus pensamentos, nenhum deles falou durante o percurso. Sentia-se aquele silêncio metálico que precede os grandes desastres, um silêncio que elimina toda a noção de vida e de humanidade. Agora era tarde de mais para regressar; já o era no momento em que haviam partido.
As escadas pesavam como ferro, mas todos os que as carregavam sabiam orgulhosamente que as fateixas eram deixadas apenas para os mais fracos de corpo. As muralhas da cidade, vistas de baixo, ofereciam uma ideia de inexpugnabilidade. Pararam a alguns metros, enquanto uma fateixa era lançada. O sem-pavor subiu, e desapareceu de imediato. Uma sentinela estava parada a dez passos dele. O tempo parou, e naquele momento interminável a sentinela dominou toda a existência dos homens que esperavam ansiosos lá em baixo.
A sentinela desapareceu. As escadas foram erguidas, lançaram-se inúmeras fateixas, e quando dezenas de guerreiros se encontravam dentro das muralhas de Beja, gritaram como selvagens: o som mais medonho do mundo ribombou como um trovão por toda a cidade. Chegara a hora da matança.
E nesse instante ficou selado o destino de todos os que habitavam protegidos por uma das mais poderosas fortificações do ocidente peninsular. O combate prosseguiu por toda a noite, assim como as pilhagens e destruições. Mais tarde, quando os bandidos comandados por Giraldo Geraldes, o sem-pavor, abandonaram a zona, deixaram pelas costas uma cidade completamente arruinada. Era o ano de 1162. Nunca a região enfrentara um terror com tais dimensões. E os habitantes de Trujillo, Évora, Cáceres, Montanchez, Serpa e Juromenha não perderam pela demora.
RM

segunda-feira, janeiro 03, 2005

A Torre de Beja (I) 

No dia sete de Dezembro o meu primo convidou-me a passar duas noites em Beja, onde está estudando na escola agrária. Esta tem como lema feliz "Aprender fazendo", mas creio que tal lema nem sempre é aplicado da forma mais correcta...
Cheguei na terça à tarde, fui esperá-lo à porta do politécnico e em três minutos estava a instalar-me nos meus aposentos. A casa alugada alberga quatro rapazes que estudam nas mais variadas àreas. Eles foram chegando, fizeram-se as apresentações e desde logo fiquei bastante à vontade, pois todos esboçaram um largo sorriso hospitaleiro quando me conheceram. Havia mais um convidado na casa, um moço de dezoito anos, primo de um dos rapazes.
Conversámos um bom pedaço na sala. O tempo passou a voar, e quando dei por mim estava na cozinha, a saborear um excelente bacalhau à brás acompanhado de vinho tinto à descrição. Em Beja bebe-se forte e feio, e tive autoridade suficiente para simpáticamente recusar que o meu copo fosse completamente cheio pela segunda vez. Houve quem tivesse bebido o triplo ao longo do repasto.
Falou-se de cursos e projectos para o futuro. Os rapazes eram todos das zonas urbanas da margem sul do Tejo, e só eu e o meu primo possuíamos origens alentejanas.
Ao saber o que eu fazia, um dos rapazes (alcunhado de puto, por ser o mais novo da casa - 20 anos) exclamou:
- Os Alentejanos inteligentes partem de cá para estudar em Lisboa, e os lisboetas burros vêm de lá estudar para o Alentejo!
Rimo-nos todos, e eu coloquei um ponto final no assunto:
- Não te martirizes dessa maneira, que isso não é verdade, e eu sei bem porque conheço muita gente que estuda em Lisboa e não se rala com estudos nem com nada.
O jantar prosseguiu animado, e terminou com um brinde meu:
- A Beja, e a todos nós que cá estamos!
- A Beja e à nossa! - brindaram todos.
Depois do jantar chegou mais um amigo deles, que trabalha em Évora e estuda em Beja.
Comecei de imediato a lavar a loiça, o que chocou os "donos" da casa. Eles têm a "tradição" de deixá-la no lava-loiça até à manhã seguinte, por forma a ser "mais fácil" de lavar... Não lhes dei ouvidos, e com o auxílio do meu primo todos os pratos, copos e talheres ficaram a brilhar num ápice.
Saí da cozinha, quando dei de caras, na porta desta, com uma folha onde estavam descritas ao pormenor todas as tarefas de lida doméstica ao longo de um mês. Afinal, os rapazes eram organizados, o que era confirmado pela limpeza criteriosa de toda a habitação e pela qualidade da comida. O único problema digno de nota era o frigorífico, que avariara dois dias antes: estava cheio de gelo e o puto teve a triste ideia de removê-lo com uma faca - resultado: furou o plástico do aparelho e o gás libertou-se com um cheiro nauseabundo. Adeus frigorífico, um novo ainda vai demorar a chegar, pois os proprietários da casa parecem ter outros planos a curto prazo para o dinheiro da renda.
Seguiu-se a azáfama de lavar dentes, pentear, vestir e perfumar. Alguns rapazes vestiam-se de forma bastante sólida, com ganga da cabeça aos pés, enquanto outros se vestiam de forma mais sofisticada. Eu era a pessoa com mais peças de roupa, pois o frio de rua nocturno é-me insuportável, ao contrário do diurno que me enche de uma energia electrizante.
Antes de sairmos, olhei-os, um por um. Estavam todos com um brilho fabuloso no olhar.
Chegara a hora de partir para a noite.
RM

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